Amor e sexo é um tema vasto, e igualmente vasta é a forma como tem sido explorado ao longo da história pela indústria cultural. A dicotomia entre atração física e o encantamento romântico, verdadeira ou não, já virou livro, já foi levada aos palcos, algumas dessas peças já se transformam em filmes e muitos desses filmes acabam por se misturar à nossa própria vida
O maior trunfo de “Ninfomaníaca — Volume I” é dizer com todas as letras que o amor é o ridículo da vida e o sexo, o ridículo do amor. Lars von Trier conhece do riscado como poucos. Toda a sua obra se fundamenta, em maior ou menor proporção, na inadequação do homem frente às tantas situações de conflito moral que lhe apresenta a vida. Foi assim em “Medeia” (1988), ao retratar o mito da feiticeira que, ferida em seu orgulho fêmeo, faz o que todo mundo sabe, sem nenhum remorso; “Dogville” (2003), protagonizado por uma mulher humilde que foge de gente que a hostiliza e acaba sendo ainda mais perseguida, por gente que julgava cordata; e “Melancolia” (2011), que registra as reações completamente díspares de duas irmãs com a iminência de um cenário apocalíptico. Como se nota, Von Trier foi se constituindo um exímio analista das esquisitices da natureza humana, mas por uma ou outra razão, sobressaiu em seu trabalho a alma feminina em sua beleza, sua sujeira, sua fragilidade.
Valendo-se de uma condução algo funesta para “Ninfomaníaca — Volume I”, o diretor apresenta as tantas contradições do universo que se propõe a retratar. A paleta de cores de tons assustadoramente pálidos, dá ao filme uma cara de noir dos anos 1940, mas sem prejuízo da irreverência que o mote da história acaba suscitando, que sob determinado ponto de vista degringola em humor involuntário. Questionando, provocando, desafiando, Von Trier apresenta uma sequência erótica atrás da outra, em que closes de genitálias masculinas e femininas pipocam aos olhos do espectador — masculinas, sobretudo —, malgrado nunca se veja qualquer coisa que vá chocar suscetibilidades alheias (o caso de “Ninfomaníaca — Volume II é um bocado diferente), e a advertência, nos créditos finais, sobre as cenas de sexo terem sido feitas por dublês já nem tem mais importância. Testemunha-se de maneira irrefutável que o ato foi mesmo consumado, seja lá por quem. Lars von Trier marca a primeira cruzinha na coronha.
Joe, a mulher misteriosa interpretada por Charlotte Gainsbourg, é apresentada ao público caída num beco, e se fica perguntando se teria atentado contra a própria vida, lançando-se de um prédio vizinho, ou se sofrera um assalto ou coisa pior, e essa dúvida persiste ao longo de “Ninfomaníaca — Volume I”. Talvez tivesse sido capaz de levantar-se e ir-se embora sozinha, depois de algum sacrifício, mas Seligman vai em seu socorro. Igualmente enigmático, mas ainda mais solitário, o personagem de Stellan Skarsgård a ampara, conduzindo-a a seu apartamento, onde lhe prepara uma xícara de chá com leite enquanto Joe repousa. Evidentemente, Seligman quer alguma coisa em troca como paga por tanto empenho, nem que seja saber o que houve, sem circunlóquios ou floreios. Sua hóspede concorda em explanar toda a história, mas felizmente para quem assiste, Joe retrocede ao ponto que considera adequado a fim de que tudo faça sentido. Os dois permanecem juntos no quarto, por um bom par de horas, enquanto a chuva miúda vai molhando a janela.
Von Trier usa o recurso de repartir o filme em seções-título, cada um desses segmentos dispondo de narrativa específica. A câmera volta para o quarto em ocasiões pontuais, registrando Joe, completamente absorta no que vai narrando ao novo amigo desconhecido, e Seligman, por seu turno, irrequieto, tentando ter certeza sobre se o que acabara de ouvir é mesmo verdade ou um delírio da protagonista, que poderia ainda estar padecendo das sequelas da agressão, mas nunca assustado. Todos os detalhes que passa a conhecer acerca da história o fascinam e se estabelecem entre os dois uma relação profunda. Malgrado nem tivessem se apresentado um ao outro até então, uma das primeiras coisas que a personagem de Gainsbourg fica conhecendo sobre o parceiro é que pesca bastante, embora traga poucos peixes na ponta do anzol ao cabo desses momentos de lazer. E a imagem de um sujeito pescando, sozinho, às margens de um rio caudaloso, é mais um dos elementos estéticos a orbitar o enredo.
A abordagem do sexo como uma fonte de prazer que vai secando, secando até não restar nada além de desalento, de vazio, é o ápice de “Ninfomaníaca”. À medida que Joe se alonga sobre suas experiências sexuais, vivenciadas com mais ênfase a partir de um jogo que lhe propõe B, a amiga de infância igualmente desinibida de Sophie Kennedy Clark, durante uma viagem de trem, mais se cristaliza a certeza de que transar, para ela, é uma atividade que se liga a qualquer coisa, poder, vaidade, diversão, tédio, menos ao amor. Tendo descoberto a capacidade de sentir prazer erótico ainda em tenra idade, Joe dava vazão a suas demandas sensuais em brincadeiras no chão molhado do banheiro, reprimidas pela mãe, interpretada por Connie Nielsen, ao passo que o pai, personagem de Christian Slater, a estimulava. Esses flashbacks, em que Joe é vivida por Ananya Martin em criança e Stacey Kent quando adolescente, são imprescindíveis a fim de se entender em que momento o trem do desejo pode ter descarrilado na vida da personagem central. Ao identificar sua virgindade como um “problema” e procurar Jerome, o mecânico das redondezas, de Shia LaBeouf, no intuito de saná-lo, Joe dá termo à questão da forma menos sentimental, uma alusão de Von Trier à própria dinâmica do sexo, assunto que um mecânico certamente domina. Sexo é movimento, mas não só — e esse é o verdadeiro problema. Confusamente imatura, Joe é incapaz de entende qual a medida de sua responsabilidade ao aceitar ou recusar alguém como seu parceiro de alcova. O que deveria significar liberdade passara a ser prisão.
Caudaloso, pleno de referências e elucubrações filosóficas, “Ninfomaníaca — Volume I” é só um aperitivo, ainda que meio condimentado demais, sobre as outras discussões que permeiam o sexo, escrutinadas por Lars von Trier com o mesmo denodo. Pretendendo chocar, intencionalmente ou não, o que o diretor faz é dar um alerta sobre as armadilhas do sexo, que no melhor dos mundos seria apenas o desdobramento mais natural do amor, mas que no mundo real resta banalizado, vulgarizado, criminoso até. O prazer tem um preço, mas muita gente prefere levá-lo de graça, e o que é de graça custa caro.