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Universidade alemã oferece ‘bolsa para não fazer nada’ com prêmios de até 1,6 mil euros

Iniciativa da universidade alemã instiga propostas que repensem ação humana no planeta Foto: Lucas Tavares / Divulgação


 Folgenlosigkeit. O termo, mais uma daquelas palavras que parecem só existir em alemão, significa a ausência de consequências causadas por um ato. Esse conceito vem sendo usado em debates sobre como abandonar certos hábitos pode abrir caminho para uma vida com menos impactos negativos no planeta. Inspirado nessa concepção, o arquiteto e professor da Universidade de Belas Artes de Hamburgo (HfBK), na Alemanha, Friedrich Von Borries, resolveu criar a iniciativa “Bolsa para não fazer nada”, no intuito de dar uma cutucada na sociedade em meio à quarentena da Covid-19.

A ideia é instigar as pessoas a pensar no que podemos “não fazer mais” para viver melhor. E o projeto não para nessa provocação: serão três prêmios de 1,6 mil euros para as melhores ideias e as respostas inscritas farão parte de uma exposição. Para concorrer, basta tirar do papel aquela lista de coisas que você já não deseja fazer há tempos.

ser convertido para o bem comum. Ele adianta que os candidatos captaram esse espírito: entre as respostas mais frequentes, que chegam em formato de listas e até poemas, estão causas como: não trabalhar num emprego que destrua o planeta; não ter carro; não comer carne; não enriquecer às custas dos outros; não odiar…

— Folgenlosigkeit pode ser uma utopia positiva; a ideia de que a vida de uma pessoa não tenha consequências negativas para os outros ou para o planeta. Deve ser visto como um valor que vale a pena lutar: como igualdade, liberdade, justiça — afirma o idealizador da iniciativa, que faz parte projeto “Escola da folgenlosigkeit: exercícios para uma vida diferente”.

Para dizer o que não gostaria de fazer mais, o filósofo italiano Domenico de Masi cita um poema chamado “Se eu pudesse”, de autor desconhecido e falsamente atribuído a Jorge Luís Borges nas redes, que tem entre seus versos a frase “Tentaria não ser tão perfeito, relaxaria mais”. O autor do livro “O ócio criativo” acredita que a pandemia da Covid-19 forçou a humanidade a um “grande seminário residencial” para pensar sobre como nosso excesso de produção, tarefas e demandas, estão esgotamento as possibilidades de vida no planeta.

— Perseguimos um modelo de vida centrado no frenesi da produção voltada para o consumo e do consumo voltado para a produção. O coronavírus forçou milhões de pessoas a refletir sobre seu destino e tenta nos ensinar que o necessário é mais importante do que o supérfluo, que é preciso ser solidário — diz De Masi.

Antropoceno

Como lembra a filósofa e professora da Puc-Rio Alyne Costa, o cenário do pós-guerra, quando a queima de combustíveis fósseis em larga escala permitiu um crescimento populacional e uma acumulação material sem precedentes, provocou mudanças climáticas e perturbações ecológicas. Esse período foi chamado de “grande aceleração” pelos cientistas e empurrou nosso planeta para o Antropoceno — conceito que considera a ação humana como uma força geológica capaz de moldar a paisagem global. Alyne, que gostaria de não trabalhar mais num ritmo tão “extenuante”, diz que reflexões como a proposta pela universidade alemã são importantes para imaginar novos caminhos. Porém, ressalta que apenas atitudes individuais não são suficientes para enfrentar problemas de ordem estrutural.

— Acredito que ainda é cedo para saber o que podemos ter aprendido com essa tragédia. Muito se falou sobre a conexão entre o aparecimento de zoonoses e a degradação ecológica. Mas resta saber se isso se refletirá na adoção de políticas públicas de modo a reduzir o risco de novas catástrofes sanitárias, sociais, ecológicas e econômicas — analisa a filósofa.

Obrigações como viajar de avião e de trabalhar mais de 30 horas semanais estariam entre as que o professor de ecologia da UFRJ Fábio Scarano gostaria de deixar de ter. Na sua visão, nos últimos 400 anos o homem foi sofrendo uma “extinção da experiência da natureza”, enxergando plantas ou animais de outras espécies apenas como recursos ou obstáculos a superar.

— Não conseguimos conceber um sistema de construção de riqueza mantendo a natureza em pé. Para evitar o colapso, precisamos de uma ética como o princípio da responsabilidade, do filósofo alemão Hans Jonas, que foca na preocupação com as próximas gerações humanas — destaca Scarano — Precisamos ouvir (o ambientalista e escritor) Ailton Krenak quando diz que gostaria muito que não voltássemos ao “normal” após a pandemia, pois esse “normal” é justamente o problema.

Economia circular

Parte do desequilíbrio a que Scarano se refere está justamente na forma como ocupamos (e degradamos) o ambiente. Para Valter Caldana, professor de arquitetura e urbanismo da Mackenzie, é necessário uma revolução comportamental nas cidades e a implementação de políticas para tratar problemas como mobilidade, moradia e saneamento.

— Para além da sustentabilidade, é fundamental pensar na qualidade de vida, ter condições materiais e imateriais para viver de maneira digna no ambiente urbano. E aí sim desfrutar dos benefícios de estar na cidade, de maneira menos custosa e agressiva — opina Caldana, que não quer mais usar o espaço público urbano apenas como meio de “passagem”, mas como lugar de “estar e usufruir”.

A necessidade de desacelerar e refletir sobre o tempo já foi tema de canções como “Paciência” e “Leve e suave”, de Lenine. O cantor e compositor, que diz não querer mais “perder o precioso tempo com mediocridade”, acredita que soluções para o impacto humano em seu ambiente passe por propostas como a economia circular, sistema fundamentado por princípios como a reutilização de resíduos pelos indivíduos e pela indústria

— O homem como espécie já super povoou o planeta, e isso não tem volta. Não dá pra pensar nenhum futuro possível sem profundas transformações no modo de vida do ser humano moderno — afirma Lenine.

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